Tinham quatorze anos aquelas duas meninas. Uma era mais esperta, a outra, mais bobinha. Mas eram ambas adolescentes e a adolescência é uma fase de formação, de amadurecimento, e, claro, de muitas dúvidas, dilemas, angústias, tormentos. É a época em que se vive os extremos: a vida é maravilhosa ou a vida é um completo caos. Ficaram na mesma turma do colégio e acabaram ficando amigas. Muito amigas.
Juntas, descobriram a música, o violão, o Clube da Esquina. Juntas, passaram aperto em matemática, odiavam educação física, gostavam de cantar, de ler e de escrever poesia. É bem verdade que o canto e a música faziam mais parte do mundo de uma delas. Mas a literatura e a redação também faziam mais parte do mundo da outra. Tomaram os primeiros porres juntas. E uma sempre estava perto quando a outra precisava de ajuda.
Acabou o ano e as meninas se separaram. Era uma escola técnica e cada uma escolheu um curso. Cada uma foi pra uma sala diferente. Engana-se quem pensa que houve também a separação da amizade. Estar em cursos diferentes evidenciou diferenças, mas não as distanciou. Houve momentos em que as meninas estiveram sim um pouco afastadas, mas muito mais pelo curso do que pela diluição da amizade. Continuaram amigas. E pelo menos uma delas achava que o que as mantinha unidas era o amor pela música, pelo teatro, pela literatura e a completa aversão pela educação física!
No terceiro ano distanciaram-se um pouco mais. Cada uma tinha seus interesses, seus objetivos, mas só em sala de aula. Do lado de fora, nos intervalos, lá estavam as duas, sonhando com um futuro onde as pessoas seriam sempre felizes. Naquela época, as meninas, então com dezesseis anos, ainda acreditavam que haveria uma revolução cultural e que as pessoas se tornariam mais sensíveis. As meninas já não acreditavam tanto que poderiam mudar o mundo, mas tinham certeza que iam tentar sempre.
Uma das meninas foi embora. Mudou-se para o outro lado do mundo. A menina que ficou escreveu à mão em algumas folhas de caderno a letra inteirinha de “Meu Caro Amigo” e mandou pra que estava longe. Ainda era o tempo das cartas. Foram poucas, é verdade. A menina que estava longe ficou enfurecida, mas voltou e encontrou a outra a esperando com o violão na mão. Escrever aquela música tinha até doído a mão. Naquele dia cantaram e tocaram até tarde da noite e ambas perceberam que muita coisa havia mudado naquele ano de distância. As meninas haviam mudado muito, estavam menos adolescentes, estavam mais amigas.
Mas a vida novamente acabou separando as duas meninas. Cada uma morando em uma cidade, ambas trabalhando de dia pra estudar à noite, sempre muito cansadas. Falavam-se por telefone, mas isto passou a acontecer apenas duas vezes por ano: nos aniversários. Encontraram-se algumas vezes, claro. Havia as festas de ex alunos e elas combinavam de se ver lá. Divertiam-se, riam muito, lembravam dos tempos da adolescência e iam embora, cada uma pro seu lado. Quanto riso, quanta lágrima!! Mas o fato é que se afastaram...
Muita coisa aconteceu durante o período em que as meninas estiveram afastads. Tinham notícias uma da outra por amigos comuns, pelo orkut, às vezes por e mail. Uma das meninas era muito mais relapsa que a outra; ligava menos, escrevia menos. Mas sonhava muito. E muito alto. Sonhava com a harmonia entre os homens, com a paz, com a alegria. A outra menina se casou, conseguiu um bom emprego e mudou-se para o interior de vez. Voltaram a se encontrar no casamento de uma delas, a que jurara pra si mesma nunca se casar. Coisas da vida. Separaram-se novamente depois de um abraço forte e sincero. Uma das meninas teve uma filhinha, que a outra sequer se dignou a ir conhecer. Estava correndo contra o tempo. Sempre o tempo era o culpado. Mas não era só pra menina recém casada, era pra recém mamãe também. E assim a amizade se mantinha, apesar do pouco contato.
Quando a filhinha da menina fez um ano teve uma festinha e a amiga foi. Já havia furado demais, não podia se arriscar mais a perder aquela amizade. Esta menina estava passando por maus pedaços, mas se arrumara lindamente pra comemorar a alegria da amiga. Depois de tanto tempo queria bater papo, jogar conversa fora, colocar a fofoca em dia. Não queria falar de coisas ruins, de problemas, dos dilemas que ainda a perseguiam. E assim foi. As meninas se encontraram e foi muito bom. É verdade que a mamãe era a verdadeira anfitriã e não podia dar atenção exclusiva à sua amiga.Mas pra quê serve a amizade se não conseguir compreender estas coisas? A menina sentiu pesar, mas não ficou triste. Pelo contrário: sua amiga estava tão feliz que só conseguia compartilhar daquela felicidade.
Acabou indo embora à francesa. Aquela festinha de criança havia trazido lembranças e emoções demais pra uma noite só. A menina foi embora feliz, mas com medo da outra ficar chateada por ela ter sumido sem dar tchau. No dia seguinte, pensou em telefonar, mas ia dizer o quê? Enrolou, enrolou e acabou não ligando. Pior, mergulhada nas suas reflexões (que apelidara carinhosamente de revolução existencial interna), esqueceu-se do aniversário da amiga e aí se perdeu. Isto nunca havia acontecido em quase quinze anos. A menina ficou bastante envergonhada, mas também não ligou. Dentro de exatamente um mês seria o seu aniversário e se a amiga não telefonasse, aí ela telefonaria.
Antes que se passasse um mês, num dia difícil, cansativo (culpa da caminhada a que a menina se forçara a praticar), a menina recebeu um e mail da amiga. Na linha de assunto vinha “Preocupada”. E quem se preocupou foi a que recebeu o e mail. Eram poucas e emocionantes linhas. A amiga estava preocupada com a outra porque a achara triste na festinha da sua filha. Perguntou como estavam as coisas, se era stress, cansaço da profissão e terminou pedindo notícias e dizendo que a amava muito, e que o pouco contato não ia mudar aquela amizade jamais.
Aquela mensagem abalou a menina que a recebera. Encheu seus olhos d’água, algumas lágrimas rolaram. Poucas pessoas são capazes de perceber a tristeza embaixo da aparente alegria. A menina já tinha passado pelo pior, já estava na fase da superação. Na festinha da filha da amiga estava feliz por estar lá, não foi necessário nenhum esforço, nenhuma representação. Aliás, a menina era péssima atriz quando seus sentimentos eram verdadeiros. Nem se quisesse conseguiria transparecer o que não era realidade. Ela estava sinceramente feliz sim. Mas as marcas de decepções recentes ainda estavam nos seus olhos, na sua voz, no seu sorriso, no seu riso. Poucas pessoas conseguem perceber as nuances destas mudanças, mas os amigos percebem. E os verdadeiros amigos oferecem seu ombro e seu amparo. Era o que havia acontecido. Nem a correria da festinha, nem aquelas crianças correndo sem parar, os choros, os chamados, as outras pessoas haviam impedido que a menina percebesse a mudança no semblante da outra. Só ela percebeu, mais ninguém. E por isso havia mandado aquele e mail. Por isso oferecia o seu ombro.
A menina leu e releu aquela mensagem curta várias vezes. Pensou em deixar pra responder depois, mas não conseguiu. Quis dizer que está feliz, que conseguiu atravessar um caminho difícil, que ainda não se recuperou das quedas, mas que sabe que aprendeu com elas. Quer dizer que sabe que seu semblante não é mais o mesmo, mas que também sabe que um dia voltará a rir à toa. A resposta a esta hora já deve ter sido lida e a menina está ansiosa esperando a outra escrever outra vez. O dia de voltar rir à toa está próximo, a menina sente isso no ar. E quer que sua amiga esteja por perto pra poder olhar nos olhos dela com a mesma alegria de quinze anos atrás.
Larissa é uma das meninas desta história e acha que isto nem precisava falar. Mas precisa dizer à sua amiga que ela, com suas poucas palavras, suavizou muito uma das marcas que a vida lhe deixou.